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A menina do telefone

«Mark Mitchell, um informático britânico, comprou um iPhone. Abriu a caixa. ligou-o, começou a brincar com ele. A explorá-lo, como qualquer um de nós faria com uma máquina nova nas mãos. Até que experimentou a câmara fotográfica. E foi aqui que a história dele deixou de ser igual à nossa. Pois Mitchell descobriu que alguém, antes dele, tinha usado o seu telefone para registar meia dúzia de fotografias. No seu telefone por estrear guardavam-se dois retratos de uma rapariga chinesa, envergando uma farda branca com risquinhas cor-de-rosa, numa linha de montagem.

A rapariga ri simplesmente numa fotografia. Noutra, com as duas mãos enluvadas, faz um V de vitória. Nas outras quatro fotografias, apenas a fábrica. A história tornou-se rapidamente conhecida quando "markm49uk" acedeu ao site macrumours.com e revelou a sua surpresa. Num instante a busca foi lançada: quem é esta rapariga? Soube-se que trabalha na FoxConn, uma fábrica em Shenzhen que monta iPhones para a Apple. Os seus responsáveis não quizeram revelar o seu nome, mas adiantaram que as fotografias tinham sido provavelmente um teste do equipamento e, por descuido, não tinham sido apagadas. Acrescentaram que o erro não implicaria qualquer despedimento, pois na verdade era apenas um beautiful mistake.

Um erro que tem de facto qualquer coisa de belo. Não é suposto que nome próprio algum assine uma máquina montada numa fábrica. Quando muito, se dermos com um papelinho com o controlo de qualidade, já chega. Mas ela não é um nome nem um número, é um sorriso. Diz: fui eu que fiz. E, num par de fotografias, toda a revolução industrial ganha um rosto. Faz sentido que cante vitória, pois ela venceu o sistema.

No admirável mundo nosso que já não é novo e por vezes pouco tem para admirar, no qual as máquinas e pessoas tratadas como máquinas nos montam os aparelhos com os quais vivemos, já não há lugar para graças humanas como esta. Parece que só os aparelhos têm direito a exibir as suas gracinhas, as do novo sistema, das novas funções, das últimas tecnologias inventadas certamente por pessoas que adivinhamos engraçadas porque imaginativas mas que nunca saberemos quem são, também elas escondidas para sempre atrás de um único nome, o da marca.

Outra informação interessante que a FoxConn se apressou a comunicar à imprensa é que a rapariga não pretendia ser identificada. Mais, teria ficado tão aflita que a empresa até lhe oferecera um dia de folga para recuperar da emoção. Sorte a dela, pois, segundo um relatório do China Labour Watch, por ali os funcionários não costumam ter mais do que dois dias de folga mensais. Se excepções como esta se tornassem regra, se ao comprarmos um produto nos confrontássemos com o rosto que o fez, talvez isso até não fosse má ideia. Entre crianças a coser sapatos e jovens asiáticas exploradas até ao tutano a empacotar as T-shirts que compramos por quase nada, ficaríamos a conhecer melhor o mundo em que vivemos. Porque para além do packaging e do marketing, lhe víamos o rosto.»

Catarina Portas, P2. 13 Setembro 2008


Lições de ciência política.

Quando um pobre, operário, analfabeto, urbano vota à esquerda, é porque os partidos de esquerda defendem os interesses das classes oprimidas. Quando um pobre, agricultor, analfabeto, rural vota à direita é a expressão do conservadorismo retrógrado e ignorante.

Henrique Burnay, no 31 da Armada.

A barba do herói por fazer


Há uma relação intrínseca entre o boémio e a sua barba. O boémio usa barba de três dias. Até aí, isto é, até à septuagésia primeira hora dessas setenta e duas, considerada barba feita. Mesmo que dê para arear panelas, acender fósforos, lixar caixilhos em criptoméria com ela. Acima dos três dias, sobe-se de nível: de boémio passa-se a professor Fernando Carvalho Rodrigues, Pai Natal, roady dos ZZ Top. Por esta ordem.

O boémio não faz isto por estilo, querer dar um aspecto negligé, imitar o Mourinho. Ainda o Special One dava aulas de educação física na C+S do Portinho da Arrábida, já ele usava aquele sombreado capilar com a mesma regularidade dum nariz, duns olhos ou duma boca. Fá-lo porque só uma a cada três manhãs salta da cama em tempo útil. Até lá, pode ter o patrão a ameçá-lo de despedimento, a namorada a gritar que o deixa se lhe continuar a provocar aquela irritação de pele, a mãe a telefonar para perguntar se tem dado uso à Gillette Mach3 que a tia Natália ofereceu pelo Natal em plena reunião de sócios da empresa. Ele não sucumbe.

A barbinha - diminutivo, tenha-se presente, muito másculo - diz com as olheiras, o cabelo desalinhado, o feitio refilão, revolucionário com a Segurança Social em dia, a inócua discordância com a normalidade. E é como um par de botas da tropa, as calças de ganga, um casaco de cadebal, uma edição de bolso do Bukowski: é parte da armadura urbana dentro da qual se esconde a vulnerabilidade do desencontrado.

E há mais. O boémio considera uma franca paneleirice o negócio em torno deste assunto. Antigamente, havia as gillettes com lâmina única, com um corte ao centro que se encaixava no cabo, um aftershave Old Spice que ardesse ainda pior que cheirava e uns lápis manhosos que se espetavem nos corte e que duravam uma vida. Depois e de súbido, vieram as lâminas-gémeas, as três lâminas flexíveis que se adaptavam ao rosto, as cinco daquela que, agora, anunciam o Henry, o Federer e o Tiger Woods. As brauns e as philishave, os hidratantes, os esfoliantes, os cremes para antes e depois. O tanas. O homem que é homem - e o boémio é um - só quer fazer a barba, não ficar com a cara mais macia do que o rabinho dum bebé. E quer viajar sem pagar excesso de bagagem e empenhar mais do que o PIB de Andorra em despesas de higiene mensais. E, sobretudo, ele reteve a informação fundamental: amanhã, a barba vai crescer outra vez; portanto, para quê ter todo o arsenal de um samurai de roda dela?

A barba por fazer é, finalmente, a aproximação possível do boémio ao herói de aventuras clássico. Como poderia ele chegar a convencer uma mulher de ter qualquer coisa de rebelde sem causa, de Indiana Jones dos pequeninos, se andasse com a cara no lastimável estado dum promissor bancário, dum bem sucedido corrector da bolsa que arrisca diariamente a vida num novíssimo jogo da Playstation?

Alexandre Borges, Atlântico, n.º 34

As meretrizes de estrada


O que é feito delas? Daquelas velhas gordas e desdentadas que, sentadas em cadeiras de praia, com coloridos chapéus-de-sol, vendiam felicidade a quilo aos automobilistas que passavam? Quem não sem lembra delas? Quem não se lembra dos agitados e engarrafados arbustos à beirinha das nossas estradas? Chegou o desenvolvimento, as auto-estradas e as brasileiras. Foi-se com elas a alcoviteira. Senhora de generosas coxas. De fecundos e saltitantes pimponhos que serviam de marcos de estrada à antigas nacionais. Esforçada amante de imponente presença. Cada centrímetro compreendia quilos de volúpia. Podia não ser perfeita. Mas o que lhe faltava em dentes sobrava em vontade de agradar.

Desapareceram. Sumiram. Danos colaterais da via verde e da marcha do progresso. E, sobretudo, vítimas da globalização. Russas, lituanas, peruanas, checas e brasileiras. Especialmente brasileiras. As nossas Donas Alziras e Donas Márcias deram lugar a mirradas Darlenes e Vânias. Gaiatas, made by Pitanguy, com certo travo a fast food de estação de serviço. Vieram as brasileiras com os seus apartamentos privados e foi-se a formosa Dona Alice, que, ao quilómetro 54 da recta do infantado, dispensava prazer ao metro quadrado.

E o país chora a laranja algarvia e a pêra do oeste. Chora a frigideira, o torresmo e a bola de Berlim com creme. Chora o dumping dos barcos espanhóis, da carne argentina e dos iogurtes franceses. Chora a globalização, a ASAE e a legislação comunitária. Chora por tudo. Pelas meretrizes de estrada, verdadeiras filhas da terra, não chora nada.

"É o mercado", dizem-me os entendidos. "As estrangeiras estavam mais bem preparadas". Como as laranjas espanholas, conta mais a embalagem do que o sumo. Abriram-se as portas e lá vieram elas. No mercado da felicidade quase não sobrou produto nacional. Ficaram mais tristes as bordas das estradas e abandonada a moita do quilómetro 54.

É ingrato, o país. Quanto desassossego aqueles regaços não consolaram? Quantas lágrimas aquelas parras não secaram? Quantos maridos mal cuidados não foram ali confortados?

A culpa não é do desenvolvimento, nem da globalização, nem tão pouco das brasileiras. A culpa é do povo que, deslumbrado, até na cama vive acima dos suas capacidades.


Rodrigo Moita de Deus, Atlântico n.º 34