Por exemplo: um sonho

Vê-se de tudo - e para que tal suceda não é preciso mais do que andar de olhos abertos ao delírio das ruas e das praças.

Por exemplo: o homem que se detém no limiar do passeio, que aí ergue ambos os braços e o rosto para o frio da manhã; o homem que aí fica assim, parado, muito tempo, estátua ou árvore com os galhos nus.

Por exemplo: a menina preta que tem olhos fundos como poços e contas coloridas prendendo as tranças do cabelo; a menina que olha e parece capaz de comer o mundo com a boca do olhar.

Por exemplo: a mulher que está na varanda e tem as mãos cheias de grãos e milagres; a mulher que alimenta a revoada dos pombos que esvoaça diante da varanda, qual nuvem de penas e pó.

Por exemplo: a rapariga que está deitada na relva molhada e aí parece dormir ao sol; a rapariga que agora mesmo, sendo anjo, veio do céu aos trambolhões, em voo ébrio de parafuso, como folha seca, e ficou, adormecida e bela, sobre o verde húmido dos jardins do Palácio de Cristal.

Detenhamo-nos nela, na rapariga que parece dormir sobre a relva. Não dorme - descansa apenas. Tem os braços fechados num abraço que é toda a ternura do mundo e os ténis gastos de correr mil caminhos. A saia dela é feita de vento e tem as pernas rijas de caminhar por terras aonde as estradas não vão e por sítios que nem os mais esbarrondados trilhos alcançam. E traz os livros, a rapariga - livros que aí estão caídos, abandonados como um baralho de cartas sem trunfos.

O sono dela, que nem sono é, parece tranquilo e pacífico. Assim é o seu sossego, o descanso a que se abandona. Vinha cansada de levar palavras ao domicílio, de sussurrá-las ao ouvido dos velhos e de cantá-las mansamente para que as crianças durmam. Antes se disse que é um anjo, a rapariga que aí está e ninguém vê, mas não é ainda essa a sua natureza: ela é fada dos sonhos mornos. Inventa e conta as viagens e aventuras das quais não se quer acordar - e nisso gasta as noites, velando, ajoelhada à cabeceira de umas camas e outras, soprando as palavras que se vêem e escutam nos sonhos. Tem, a rapariga que é fada, uma pasta vermelha cheia de histórias que conta. E um caderno de capa preta onde anota os sonhos que há-de inventar.

Por exemplo: o homem que é árvore ou estátua vai, talvez hoje, talvez amanhã, acordar convencido que passou a noite num bar onde vão pessoas que nem pessoas são.

Por exemplo: a menina preta com contas no cabelo vai sonhar que é uma menina preta com contas no cabelo. Cada conta prende uma trança. Cada trança segura um sonho dela, para que se não percam nem esmoreçam. À noite, a menina sempre desfaz as tranças e se deita encolhida de fome e frio. Deposita a cabeça sobre aquilo que lhe serve de almofada e espera que a fada venha inventar sonhos novos. De manhã, acorda com a mão cheia de contas de prender o cabelo.

Por exemplo: a mulher que alimenta os pombos na varanda e tem as mãos cheias de grão; esta mulher sonha que não são grãos o que tem nas mãos, mas contas coloridas de prender os cabelos e agarrar os sonhos que esvoaçam como nuvens sopradas por fadas que rodopiam no ar como folhas secas nas tardes de Outono.

Dá muito trabalho ser a fada que inventa os sonhos. É preciso ler as histórias que vêm escritas nos livros e decorar as palavras escritas em todos os livros de todas as línguas do mundo. Os sonhos, sabe-se, são poliglotas. Repetem-se e repetem-se e repetem-se em todos os idiomas de todos os países, noite após noite. Ao fim de algum tempo, passam de moda.

Há, para que seja possível sonhar, um exército de fadas sopradoras de sonhos que constantemente se movem de um lado para o outro, indo aqui e ali, acolá e além, para que não faltem sonhos a quem dorme. Vão de cama em cama, de casa em casa, de país em país - e aí abrem as capas vermelhas onde guardam as histórias dos sonhos (e contam e contam e contam as mesmas histórias). Às vezes, aborrecidas, abrem os cadernos de capa preta e inventam sonhos novos, mal acabados, esboços ainda - sonhos trapalhões.

Por isso se cansam as raparigas-fadas que narram os sonhos. Por isso, às vezes, se deixam tombar do céu aos trambolhões como folhas ébrias em voo de parafuso e vêm cair nos jardins onde se derramam os raios de sol. Aí ficam, belas e quase adormecidas, abraçando-se a si mesmas com todo o carinho do mundo. Ninguém as vê que não tenha os olhos abertos para o delírio e magia das ruas e das praças. Ninguém sabe se sonham enquanto descansam dos sonhos dos outros.

Manuel Jorge Marmelo, O profundo silêncio das manhãs de domingo

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