O grande salto


O senhor Kenzaburo olha para o rio como quem mede a distância que vai do tabuleiro da ponte à superfície das das águas. Foi para isso que veio ao Porto. Para o grande salto. Oshima, o seu avô samurai, ficará orgulhoso. Tanaka, o seu filho informático, não deixará de concordar que o pai foi capaz de morrer honradamente. O senhor Kenzaburo não mais precisará de ter vergonha. O seu filho poderá caminhar de cabeça erguida.

Kenzaburo olha para a cidade a partir do tabuleiro superior da ponte: o casario engalfinhado na vertente do morro, as torres das igrejas, as ruas estreitas e sem luz, os barcos rabelos perfilados na outra margem. Parece-lhe um bom sítio para morrer. Não que isso seja importante. O fundamental é que seja capaz de morrer honradamente.

Todos os anos no Japão, mais de trinta mil pessoas se suicidam - gentes de todas idades e condições. Alguém matar-se não é uma coisa má, antes pelo contrário. O ritual do hara-kiri é comum desde tempos imemoriais, reservados aos mais nobres, aos samurais que não conseguiam cumprir a sua missão.

Assim também o shiniyuu, comum entre os plebeus. Às vezes morrem mãe e filho (boshi-shiniyu), outras mata-se a família toda (ikka-shiniyu). Matam-se também os amantes em enamorado pacto (joshi). No final da II Grande Guerra, diante da derrota próxima, milhares de militares japoneses suicidaram-se para lavar a honra da nação. Hoje, grupos de jovens combinam rituais de suicidio colectivo pela internet. Um manual de instruções para as diversas forma de suicidio vendeu mais de 1,5 milhões de exemplares no Japão. Os velhos que não podem pagar tratamentos médicos caros matam-se para não onerarem o orçamento familiar. Crianças e jovens matam-se por não conseguirem conversar sobre os seus problemas com os pais e professores.

Existe uma tradição de suicídio no Japão - uma cultura, um modo de vida voltado para a rectidão e para o culto de certos valores. Nada é pior que a vergonha ou o fracasso. Nem a morte, pensa o senhor Kenzaburo enquanto olha a cidade outra vez, lá do alto da ponte.

O problema foi a recessão, a crise, o desemprego. O senhor Kenzaburo era um funcionário bem pago de uma multinacional do ramo electrónico. Tinha um carro, uma casa na cidade, viajava nas férias, recolhia fotografias e vídeos, usava cartão de crédito, frequentava bons restaurantes. Quando a economia declinou e a empresa despediu metade dos funcionários, o senhor Kenzaburo ficou na rua, afogado em dívidas que não sabia já como tinha contraído, como um monte de leves folhas de papel que se vão acumulando em cima de uma secretária até que acabam por desabar estrondosamente. Assim sucedeu com a vida do senhor Kenzaburo.


Como milhares de outras pessoas na mesma situação, o senhor Kenzaburo contraiu novos empréstimos para pagar os antigos e ficou cada vez mais endividado. Tal como a muito outros, ocorreu-lhe fazer um seguro de vida e, depois, suicidar-se para que a família pudesse pagar as dívidas com a indemnização. Mas já era um pouco tarde para isso. As autoridades estavam preocupadas com as estatísticas de suicídios no país (mais de 34 mil pessoas mataram-se em 2003). Tentaram impedir a proliferação de suicídios, dificultando o acesso às amuradas dos prédios mais altos, das pontes e dos viadutos. Nos túneis do Metro foram também instaladas barreiras para evitar que os suicidas se atirem para os carris. E espelhos: espera-se que, ao olharem os próprios rostos reflectidos, os suicidas se arrependam. As companhias de seguros tinham-se também posto em alerta. O Tribunal Supremo decretou que os prémios tinham se ser pagos mesmo em caso de suicídio, mas, nos novos contratos, as empresas introduzem um clausulado que anula o seguro em casos de morte auto-infligida. Tudo estava contra o senhor Kenzaburo.

Ou quase tudo. Na verdade, munido de uma paciência que apenas assiste aos demasiado desesperados, o senhor Kenzaburo vasculhou o texto da nova apólice e constatou que, por uma qualquer distracção, as disposições que anulavam o seguro em caso de suicídio só seriam válidas no caso de o acto ser realizado em território nacional, por não haver memória ou tradição de hara-kiris cometidos no estrangeiro. Afinal, a vergonha deve ser expiada diantes dos que nos são próximos, a honra é um bem que apenas os vizinhos se dão ao trabalho de avaliar.

O senhor Kenzaburo contraiu, então, um último empréstimo: para pagar o seguro de vida e uma viagem ao estrangeiro. Escolheu o destino por acaso, percorrendo os canais de televisão, à noitinha. Viu e escutou algo sobre a cidade em que se armazena o vinho do Porto, algures, muito longe, em Portugal, o país que levou ao Japão as primeiras armas de fogo. Nas imagens, enquadrando os pitorescos barcos em que, outrora, se transportavam as pipas do vinho, uma ponte de ferro, alta e bonita - um sítio belo para se morrer, pensou. E por isso veio: para o grande salto que lhe lavará a honra. Oshima, o seu avô samurai, ficará orgulhoso. Tanaka, o seu filho, poderá voltar a caminhar de cabeça erguida. E o Duque da Ribeira, que outrora se lançava ao rio para salvar quem caísse ao Douro, já morreu. De velho.

Manuel Jorge Marmelo, O profundo silêncio das manhãs de domingo


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