O problema foi a recessão, a crise, o desemprego. O senhor Kenzaburo era um funcionário bem pago de uma multinacional do ramo electrónico. Tinha um carro, uma casa na cidade, viajava nas férias, recolhia fotografias e vídeos, usava cartão de crédito, frequentava bons restaurantes. Quando a economia declinou e a empresa despediu metade dos funcionários, o senhor Kenzaburo ficou na rua, afogado em dívidas que não sabia já como tinha contraído, como um monte de leves folhas de papel que se vão acumulando em cima de uma secretária até que acabam por desabar estrondosamente. Assim sucedeu com a vida do senhor Kenzaburo.
Como milhares de outras pessoas na mesma situação, o senhor Kenzaburo contraiu novos empréstimos para pagar os antigos e ficou cada vez mais endividado. Tal como a muito outros, ocorreu-lhe fazer um seguro de vida e, depois, suicidar-se para que a família pudesse pagar as dívidas com a indemnização. Mas já era um pouco tarde para isso. As autoridades estavam preocupadas com as estatísticas de suicídios no país (mais de 34 mil pessoas mataram-se em 2003). Tentaram impedir a proliferação de suicídios, dificultando o acesso às amuradas dos prédios mais altos, das pontes e dos viadutos. Nos túneis do Metro foram também instaladas barreiras para evitar que os suicidas se atirem para os carris. E espelhos: espera-se que, ao olharem os próprios rostos reflectidos, os suicidas se arrependam. As companhias de seguros tinham-se também posto em alerta. O Tribunal Supremo decretou que os prémios tinham se ser pagos mesmo em caso de suicídio, mas, nos novos contratos, as empresas introduzem um clausulado que anula o seguro em casos de morte auto-infligida. Tudo estava contra o senhor Kenzaburo.
Ou quase tudo. Na verdade, munido de uma paciência que apenas assiste aos demasiado desesperados, o senhor Kenzaburo vasculhou o texto da nova apólice e constatou que, por uma qualquer distracção, as disposições que anulavam o seguro em caso de suicídio só seriam válidas no caso de o acto ser realizado em território nacional, por não haver memória ou tradição de hara-kiris cometidos no estrangeiro. Afinal, a vergonha deve ser expiada diantes dos que nos são próximos, a honra é um bem que apenas os vizinhos se dão ao trabalho de avaliar.
O senhor Kenzaburo contraiu, então, um último empréstimo: para pagar o seguro de vida e uma viagem ao estrangeiro. Escolheu o destino por acaso, percorrendo os canais de televisão, à noitinha. Viu e escutou algo sobre a cidade em que se armazena o vinho do Porto, algures, muito longe, em Portugal, o país que levou ao Japão as primeiras armas de fogo. Nas imagens, enquadrando os pitorescos barcos em que, outrora, se transportavam as pipas do vinho, uma ponte de ferro, alta e bonita - um sítio belo para se morrer, pensou. E por isso veio: para o grande salto que lhe lavará a honra. Oshima, o seu avô samurai, ficará orgulhoso. Tanaka, o seu filho, poderá voltar a caminhar de cabeça erguida. E o Duque da Ribeira, que outrora se lançava ao rio para salvar quem caísse ao Douro, já morreu. De velho.
Manuel Jorge Marmelo, O profundo silêncio das manhãs de domingo
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