"Eu passava as tardes a ver aquela série de televisão onde há uma mulher que partilha o apartamento com um amigo gay, onde há um vizinho que também é gay e onde há uma amiga que tem a fama de beber muito, de tomar várias drogas e de ser algo excêntrica e devassa. Era com esta última personagem que eu me identificava mais e, deitado no sofá, a meio da tarde, com os estores corridos, sentia às vezes que ela falava directamente para mim, como se, entre sombras coloridas, apenas os seus olhos fossem reais.

Começava lentamente a desentristecer. O supervisor telefonava-me a perguntar se estava melhor da queda. Eu inventava pormenores longos e complicados. Pelo telefone, cheguei a ler-lhe parágrafos inteiros da enciclopédia médica que comprei em segunda mão na Feira do Relógio, fingindo repetir-lhe aquilo que o médico me dissera. Eu não conhecia nenhuma especialidade médica para o mal que me caíra em cima. Não podia vira-me para um lado, nem para o outro, nem podia dizer ao supervisor: «eu não vou trabalhar hoje porque - lembra-se daquela mulatinha que foi comigo ao jantar de Natal? - pois, essa era a pessoa de que eu falava quando dizia a minha namorada, e ela foi-se embora ontem, e levou tudo - excepto dois ou três pormenores que já recolhi e arrumei - e eu fiquei sem saber como levantar-me, vestir-me, caminhar pela rua». Caminhar pelos passeios ou atravessar as ruas parecia-me comparável a subir ao topo dos Himalaias, ou a qualquer outro feito que estereotipasse vontade e esforço bruto. Não podia dizer-lhe que era por essa fraqueza que não ia trabalhar. E não me imaginava a ser capaz de ficar durante quatro horas numa sala sem ninguém, sentado numa cadeira de madeira, em pose apenas para as câmaras de vigilância.

Mas não podia dizer-lhe nada disto. Mas esta era uma parte importante da minha realidade naqueles dias. Foi o motivo pelo qual, sem grande premeditação, inventei uma queda com todos os detalhes, «e rebolei para a borda do passeio e bati com o ombro», detalhes esses que o supervisor me obrigava a repetir cada vez que telefonava, com uma curiosidade inconveniente de fisioterapeuta amador.

Alheio a estas breves interrupções, eu sentia-me como um mártir romântico - o meu coração apertado por serpentes e atravessado por setas. Passei duas semanas assim. A minha barba tinha nódoas de iogurte, que duravam desde quando ainda havia iogurtes no frigorífico. Havia um exército de objectos alinhados em arco a partir do sofá: pratos, talhares, revistas, roupas, cinzeiros cheios (tinha voltado a fumar), sapatos e objectos vários que, num momento, acreditei que poderia utilizar para qualquer uma das coisas bizarras que a minha mente, em impulsos mais ou menos continuados, me ditava.

Na véspera do dia em que ela se foi embora, eu tinha pensado que já não aguentava durante mais tempo a nossa relação - detesto a palavra relação. Nessa véspera, enquanto trabalhava, eu tinha passado algum tempo (1 hora e 36 minutos, das 14 horas e 44 até às 16 horas e vinte minutos - relógio digital) a fantasiar acerca de qual poderia ser a melhor maneira de terminar a nossa relação (a tal palavra). No entanto, quando cheguei ao quarto dela e vi os armários vazios, e abri as gavetas vazias da cómoda, e soube que ela se tinha ido embora foi como -

Não sei descrever como foi, mas foi uma merda. Já tínhamos tido a discussão acerca da família dela, já tínhamos tido a discussão acerca da minha família, já tinhamos tido a discussão acerca de quem é que começou a levantar a voz, já tínhamos tido a discussão de duas ou três horas acerca de qualquer assunto que, no fim da discussão, nenhum de nós soube identificar e, mesmo assim, quando ela se foi embora começou uma depressão que durou cerca de duas semanas.

Para os telefonemas que recebia da Faculdade de Belas-Artes, tinha inventado como desculpa uma doença de pele. Em ocasiões, confundi a desculpa que dava ao supervisor (queda) com a desculpa que dava à senhora de voz estridente que me telefonava da secretaria da Faculdade (doença de pele), o que deu azo a divertidas confusões que seria agora fastidioso descrever.

Para quem se vai embora é sempre mais fácil. Pelo menos, muda de ares. Quem fica tem de respirar os resto de epiderme polvilhados sobre os móveis da casa. Neste caso, eu era essa pessoa de narinas abertas. Esse destino estava traçado desde o primeiro dia. Eu era o proprietário daquela casa de dois quartos no sossego de Alvalade, era proprietário das manhãs de pássaros e das vizinhas a estenderem roupas nas traseiras dos prédios. Eu era o proprietário daqueles cinquenta metros quadrados de chão, elevados à altura de um segundo andar, do lado esquerdo de quem estivesse virado de frente para a sua fachada. Eu e o meu pai tínhamos feito a escritura juntos havia pouco mais de três anos. Eu ficava em Alvalade. Eu não ia a lado nenhum.

Obviamente que tivemos várias discussões em que isso ficou bem claro. «Esta casa é minha». Não me orgulho disso. Agora, na memória, já não sei distinguir essas discussões daquelas em que discutíamos acerca de quem gastava mais dinheiro no supermercado, que evoluíam para discutirmos quem ganhava mais. O tempo apura a memória para aquilo que é essencial.

Mas, como disse, começava a desentristecer.

«Bora lá, man», disse eu, a falar comigo próprio, a encarnar uma personagem vaga do gueto, com os dedos melosos, com vontade de fazer chichi e com um mau hálito que eu próprio era capaz de cheirar. Foi como um despertar religioso. Mentalmente, imaginando-me um computador, ou um robot, ou qualquer coisa electrónica, defini prioridades:

1. Levantar-me

2. Lavar as mãos

3. Fazer chichi

4. Lavar as mãos

5. Lavar os dentes

6. Fazer a barba

Como qualquer máquina, não contava com os imponderáveis.

Assim que me levantei, a minha vontade de fazer chichi disparou para lá de todos os valores previsíveis, alterando a ordem que tinha imaginado e estabelecendo uma ordem nova, ditada pelas circunstâncias:

1. Levantar-me

2. Fazer chichi

3. Lavar as mãos e outras partes do corpo que, entretanto, também ficaram melosas.

4. Lavar os dentes

5. Fazer a barba

Enfim, fosse como fosse, mexi-me.

Nessa altura, eu era vigilante de um conhecido (mais ou menos) museu de Lisboa. Tinha meio horário. Talvez porque precisassem de 22 vigilantes e meio, talvez porque precisassem de 14 vigilantes e meio. Os números importavam pouco porque eu seria sempre esse meio. Durante quatro horas de 5 dias da semana, ficava sentado na confluência de duas salas do museu, vestido com um uniforme demasiado apertado, a fazer exercícios com o pescoço de hora a hora e a ter ideias - algumas das quais talvez me sinta tentado a reproduzir mais tarde.

Com alguma frequência era chamado pela Faculdade de Belas-Artes para pousar perante os alunos. Nunca tive problemas em mostrar o meu corpo, assim como nunca senti uma urgência inadiável de mostrá-lo. Por isso, tomava um duche nos dias em que ia pousar e, no centro da sala, pedia para aumentarem a temperatura do aquecedor antes de tirar o roupão. Para além disso, sentia-me com sorte quando as horas do convite para pousar não coincidiam com as horas em que devia estar no museu. Apesar de mal pago, esse era um contributo honesto para não ter de pedir demasiado dinheiro aos meus pais, ou pelo menos, para não depender exclusivamente desse dinheiro.

Ressuscitei numa segunda-feira, quase no fim de janeiro.

Telefonei ao meu amigo Costa que, por infelicidade, tinha ido fazer um retiro espiritual num acampamento de arqueologia no sul de Itália. Como é óbvio para quem o conhece, o Costa nunca chamaria retiro espiritual a esses dias passados na lama. Afinal o Costa ainda é de esquerda. No entanto toda a gente sabe, nem é preciso continuar a fingir-se mais, os acampamentos de arquelogia são uma actividade abraçada por algumas pessoas, politicamente situadas à esquerda, que precisam de se encontrar espiritualmente. (...)"

José Luís Peixoto, :-) e :-( in Hoje não

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